...
A pequena espada que afia com pedra e paciência dá voz a sua prece, dá paz a sua mente, enche-lhe de gratidão pela vida. Afinal, se a morte até dos deuses se enamora, viver é uma graça bem-vinda. Pois que seja louvada com incenso, que seja louvada com mirra, que prove do sal das dunas e das lágrimas dos hereges. Pena de falcão e estrela de ouro, olho de deus e língua de aço, não é só uma espada curta em suas mãos, mas um instrumento de adoração, benzido em raiz de mandrágora e fumaça adocicada com cravo-de-defunto. É a vontade divina entre seus dedos.
A vontade dos deuses.
Mas tem de ofertar o sacrifício a apenas um. Enquanto caminha pelos corredores em ruína, considera-os todos, bem como a situação. Não só os deuses, mas os rostos que viu enegrecer a murchar nas ruas de Beenu, os fiéis que padeceram enquanto ajoelhavam-se perante seu falecido padroeiro, e já não lhe deixam dúvidas. Ao Anjo do Deserto então, à divindade alada que sempre vagou pelas tempestades de areia em Io-Koenpur. Uma libação póstuma, no entanto, pois no Leste longínquo jaz o sacro sepulcro. A Aliança não ousaria cometer tais selvagerias se os deuses não sangrassem, mas eles sangram. Depois de quatrocentos anos em um mundo onde não há luz senão por eles, é fácil esquecer que também podem morrer.
...
Livro: Relatos de um mundo sem Luz - Evangeline
Autor: Jan Santos
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Deixe aqui seu Desabafo